Começar de novo

Ponto de Vista | o plano do PT e de seu novo governo: retomar as lutas populares e reconquistar a confiança do grande empresariado. Mas como conciliar esses dois objetivos?

O Partido dos Trabalhadores (PT), após três tentativas fracassadas, em 1989, 1994 e 1998, mudou de tática e conseguiu conquistar a Presidência da República nos quatro pleitos seguintes: 2002 e 2006, com Luiz Inácio Lula da Silva, e em 2010 e agora, com Dilma Rousseff. A mudança de tática consistiu em distanciar-se da esquerda, desistir de tentar alcançar o poder com base principalmente no amplo movimento de massas que o partido liderava e, a partir de cima, realizar mudanças a favor dos mais pobres. O quadro publicado nesta página mostra como, nos governos petistas, vários benefícios para essas camadas sociais foram ampliados, tanto em número de pessoas atendidas como em valores pagos. E, como mostramos nesta edição (ver “O destino da estrela”), embora a gratidão das pessoas das áreas mais pobres tenha contribuído decisivamente para manter a presidente petista no governo, o problema é a economia na gestão Dilma ter crescido muito pouco, o voto antipetista nas áreas mais ricas ter crescido muito a necessidade de começar de novo para o partido se manter no poder e realizar a grande mudança prometida ao País quando surgiu, no começo dos anos 1980.

Como atacar os problemas citados? “Governo novo, vida nova”, dizem o partido e o governo petista. E a partir de que ponto se deve começar? Da mobilização das classes e camadas populares praticamente esquecidas desde a decisão de chegar ao poder por cima, tomada a partir da derrota de 1998, e de um esforço da presidente Dilma para reconquistar a confiança do grande empresariado, simbolicamente alcançada por Lula com a escolha do empresário José Alencar, da gigante Coteminas, como vice de sua chapa em 2002, e de Henrique Meirelles, do BankBoston, para presidente do Banco Central (BC), quando do início do governo, no ano seguinte. Tudo indica, no entanto, que tanto o partido como o governo não veem uma contradição nesses dois objetivos, porque acreditam numa ilusão: ter feito uma revolução rara, uma grande distribuição de riqueza dos mais ricos para os mais pobres, pacificamente.

O ex-ministro Delfim Netto, além de apoiador e conselheiro do governo Lula, é um crítico bem-humorado. Ele já disse que muitos acreditam que, se Lula entrar no mar, a água sobe, isto é, não conseguem ver que as marés se formam pela atração gravitacional da Lua. Ele repetiu, em entrevista publicada pela revista semanal CartaCapital no início deste mês, que o ex-presidente é “uma coisa diferente, um animal de outro mundo, uma inteligência privilegiada”, mas que seu primeiro governo navegou beneficiado por “um vento de cauda muito grande”, a recente entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) e seu crescimento espetacular, que levou 500 milhões de pessoas do campo para as cidades e exigiu a compra de matérias-primas das quais o Brasil era um dos maiores fornecedores, como soja e minérios. Com isso, houve um ganho enorme nas relações de troca do País com os demais. “Em 2003, uma tonelada de exportação comprava uma tonelada de importação”, disse o ex-ministro ao semanário. “Em 2010, uma tonelada de exportação comprava 1,4 tonelada de importação. Ou seja, 400 quilos foram o presente externo e Lula teve a inteligência de usar essa benesse para distribuir renda. Quando Dilma assumiu, o vento de cauda tinha se transformado em vento de frente.” Delfim não menciona o fato de que o fenômeno que atingiu o Brasil nos anos da expansão chinesa atingiu, também, o conjunto dos países emergentes (ver o gráfico sobre a evolução da renda per capita nesse grupo e em nosso País ) e que o desempenho do Brasil foi pior que o da média.

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Delfim não menciona, ainda, outro fator crucial na conjuntura, o qual a presidente Dilma chamou de “tsunami monetário”, representado pela solução encontrada pelos EUA para enfrentar a gigantesca crise no centro do sistema capitalista deflagrada em meados de 2008 com a quebra do banco de investimentos Lehman Brothers. Como se sabe, a crise teve início nos EUA com o estouro da bolha de empréstimos para construção imobiliária lastreados em hipotecas dos imóveis e alastrou-se pelo mundo. O Federal Reserve (Fed), o banco central americano, seguindo a praxe dos mercados, reduziu, no segundo semestre de 2008, a taxas próximas de zero, os juros do dinheiro que empresta de um dia para o outro aos bancos com problemas de liquidez (o chamado overnight). Como isso não foi suficiente, o Fed iniciou outro tipo de estímulo para o mercado, o chamado quantitative easing, ou, em português, um relaxamento monetário quantitativo. Passou a comprar, a partir de 2009, títulos do mercado financeiro, basicamente os lastreados em hipotecas e os emitidos pelo Tesouro americano.

Foram compras gigantescas: 45 bilhões de dólares mensais em cada um dos dois tipos de papéis. A ideia era estimular os negócios num mercado praticamente parado. Para isso, o governo mudou uma regra tradicional: passou a remunerar as reservas monetárias que as instituições financeiras mantêm no Fed. Ou seja: o Fed passou a comprar papéis das instituições financeiras e a colocar os dólares da compra na conta dos vendedores no próprio Fed, pagando-lhes pelo dinheiro uma pequena remuneração. Com isso, estimulava-os a aplicar esses dólares de baixa remuneração em negócios mais rentáveis, no País ou no exterior. Nesse último caso, no Brasil, por exemplo: enquanto as taxas de juros de curto prazo estavam em torno de 0,25% ao ano nos EUA, por aqui alcançavam a casa dos 10%.


Em meados do ano passado, o Fed tinha, entre seus ativos, 1,94 trilhão de títulos do Tesouro e 1,21 trilhão em títulos lastreados em hipotecas imobiliárias comprados do mercado financeiro. E os dólares com os quais esses papéis foram comprados ganharam o mundo no tal tsunami denunciado pela presidente Dilma. Quando esses estímulos começaram a ser reduzidos, diante da expectativa de recuperação da economia americana, começou também o movimento de mudança na conjuntura internacional caracterizada pelos dólares remunerados a juros baixos, o que tinha afetado países como o Brasil. E o que era ruim, devido ao excesso de dólares enviados aos emergentes, tornou-se pior quando esses países foram afetados pela fuga da moeda americana. Entre meados de maio e junho do ano passado, começaram a saída acelerada de capitais e a venda de moedas de países emergentes – como Brasil, Índia, México e África do Sul – para transformá-las em dólares a serem investidos nos EUA. Aqui, por exemplo, as remessas de lucros das empresas estrangeiras – a despeito de o País ter entrado na trajetória de desenvolvimento lentíssimo do governo Dilma e os lucros, portanto, tenderem a ser menores – dispararam para 30 bilhões de dólares anuais, cerca de seis vezes a marca de dez anos antes.

Ao mesmo tempo, a conjuntura econômica mundial sofreu outra mudança dramática. Na China, com uma política de reduzir as tensões sociais decorrentes de quase três décadas de expansão acelerada, o governo derrubou de cerca de 10% para 7,5% a meta da taxa de crescimento da economia. Em consequência, o preço das commodities caiu e as contas externas de países como o Brasil passaram a se situar num quadro crítico. O déficit em transações correntes, que mede o desequilíbrio das contas externas anuais do País, chegou ao patamar crítico de 3,7%, nível próximo ao verificado em duas ocasiões recentes, quando o Brasil quebrou e teve de ser internado no Fundo Monetário Internacional (FMI): em 1982, sob o regime militar, e em 1998, no final do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.

A dependência dos capitais externos, que levou o candidato Lula a assinar a Carta ao Povo Brasileiro, prometendo cumprir todos os compromissos estabelecidos com eles pelo governo FHC, não foi enfrentada naquela época, mas, como se viu, continua a incomodar, e muito. O Projeto de Lei Orçamentária (PLO) de 2015, primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma, revela que a dependência financeira deve aumentar expressivamente. O PLO inclui despesas e receitas realizadas em 2012 e 2013, as reprogramadas para este ano e as previstas para 2015. Uma tabela que o resume mostra que, do realizado em 2012 para o previsto em 2015, as contas brasileiras evoluem de mal a pior:

  • Não haverá redução de impostos, como se espera: as receitas não financeiras – arrecadadas principalmente pela Receita Federal e pela Previdência Social – devem aumentar, de 1,06 trilhão para 1,45 trilhão de reais (do equivalente a 24,1% do PIB para 25,5%)
  • Na arrecadação se dará majoritariamente por meio de títulos da dívida: as receitas financeiras, principalmente feitas com a rolagem de títulos antigos da dívida pública e a emissão de títulos novos, crescerão de 859 bilhões para 1,397 trilhão de reais (de 19,5% do PIB para 24,3%)
  • Nas despesas, os gastos com pessoal e encargos sociais serão contidos: embora cresçam em números absolutos (de 191 bilhões para 237 bilhões de reais), cairão proporcionalmente, de 4,3% para 4,1% do PIB. Os gastos com benefícios previdenciários oscilarão levemente para cima, de 7,2% para 7,6% do PIB (de 319 bilhões para 436 bilhões de reais), e gastos com a rubrica “Despesas discricionárias e PAC”, em que estão investimentos, como os do Programa de Aceleração do Crescimento, serão contidos, de 4,96% do PIB para 4,92% (de 218 bilhões para 283 bilhões de reais).
  • Para comparação, os gastos com juros e encargos da dívida pública crescerão em termos absolutos, de 135 bilhões para 225 bilhões de reais (de 3,1% do PIB para 3,9%).

Evidentemente, não é com um orçamento desse tipo que se vai melhorar a distribuição de renda. Como mostra um estudo de Marcelo Medeiros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que leva em consideração os dados da Receita Federal, além dos levantamentos usados normalmente, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a renda brasileira está brutalmente concentrada nas camadas mais ricas. Segundo Medeiros, os 5% mais ricos – grupo formado por indivíduos que recebem mais de 5,3 mil reais mensais e detêm 50% da renda do País – praticamente não foram afetados pela distribuição havida nos últimos anos. “Não há evidência de que a renda dos 5% mais ricos esteja caindo e, sim, que está estável, assim como não há evidência de que eles foram deixados de lado pelo governo. A distribuição de renda ocorrida no Brasil foi dos 5% para baixo.”

Medeiros conclui ainda que o quadro pode ser “ainda pior”. Sua própria pesquisa pode estar subestimando a quantidade dos muito ricos, grupo com renda de mais de 74 mil reais mensais e que constitui 1% da população. Ou seja: não existiu a revolução pacífica da transferência de renda dos muito ricos para os muito pobres, e talvez o descontentamento da classe média com o PT se deva exatamente ao fato de ter sido ela que, na falta de uma mudança mais profunda do País, pagou pela modesta transferência de renda para as camadas menos favorecidas.